#36: O domingo apareceu para conversar
Sentou na poltrona e descansou um livro na bancada
Para ler ouvindo Vertebrae do Tiny Moving Parts
Eu não havia notado a rapidez com que os dias haviam escorrido pelos meus dedos. As janelas estavam abertas, o sol se encaixava em algumas frestas quando a cortina permitia, a brisa acariciava meu rosto e o café estava passado. A mesa estava farta para um café da manhã dominical, que antecede um almoço tardio e clássico. O famoso dia sem pressa.
O silêncio reinava, mas ele chegou de mansinho. Não bateu na porta, não avisou que vinha. Apenas apareceu, sentou-se e, com um impulso automático, saltei para trás de susto, quase derrubando o café passado que segurava. O Domingo chegou e queria conversar.
A grande poltrona parecia ser feita para ele. Larga, com mecanismos automáticos para esticar seus pés, aconchegante e, mesmo com o calor matinal, não esquentava a ponto de ficar insustentável. Ele trazia consigo uma grande pilha de livros. Percebi que não eram clássicos da literatura, muito menos os lançamentos que causam alvoroços nas redes sociais.
— Vejo que está curioso. Quer saber o conteúdo desses livros?
Eu assenti. Não sabia como lidar com sua presença. Era sábia, calma e se mostrava paternal. Ainda assim, me amedrontava vê-lo e não saber como proceder. Sem regras, sem agendas, sem alarmes. Apenas seguindo.
— Vou abrir um. Apenas.
Domingo pegou o primeiro da pilha e passou a folhear. Em sua lombada, pude notar um título: Nostalgia. Cômico. Ele tem esse costume de trazer algumas coisas que antecedem uma angústia inevitável. Nada insuportável, no entanto.
— Meu querido, não se assuste. É o hábito. Sente a brisa? Ela já carrega esse aspecto. Eu só estou tornando tudo isso ainda mais palpável.
— Eu sei… Eu…
Na verdade, eu não fazia ideia de como me explicar.
— Esta poltrona — ele continuou — já foi um trono de um grande homem. Ele fazia parte, principalmente, do último dia de sua semana. Quando o sol se despedia, o cheiro de pão fresquinho, frios e café com leite se faziam presentes. Hoje, você divide seus dias entre o teto de seu trabalho e este teto, que um dia foi o teto deste homem.
Ele não ia me deixar prosseguir com o que eu tinha para falar. Não havia o que dizer. O coração só sabia sentir, as pregas vocais secaram, o café amargou entre um gole e outro. Só me cabia deixar Domingo fazer seu trabalho. Me retalhar com suas divagações, carimbos de memórias, quebrar minha armadura do modo automático. Sentir.
— Honre seus mortos. As meditações dominicais costumam ser as mais intensas. É aqui, entre uma e outra, que você deve descansar sua mente. Repouse os olhos nas páginas desses livros, sinta o presente, se desafogue do passado e desobstrua os caminhos do amanhã. Ao acordar, quando estiver rumando à rotina, o calor e a brisa matinal novamente te encontrarão. Pegue em suas mãos e deixe-as te guiarem para a saudade livre das amarras que ferem os pulsos.
Domingo, então, descansou o Nostalgia na bancada do meu escritório, carregou seus braços com a pilha e dançou com leveza até desaparecer pela janela. Deixou, então, o ambiente em equilíbrio com o calor que estava se esgueirando.
Eu olhava o volume com indiferença. O Domingo é assim mesmo, passa e deixa alguns rastros de vida que nos fazem desacelerar a marcha, nos fazem sentir e nos preparar para os próximos dias. Para alguns, o início da semana; para outros, seu fim. Para mim? A parte para compreender o que foram os dias que passaram e os quais virão.
Sentei, abri o livro e me perdi em suas páginas. Cada um tem a nostalgia que o prende e o faz viajar na velocidade da luz, tanto que, quando notei, o sol estava se despedindo e saudando a lua que crescia no outro polo. Me arrumei rapidamente para ir à padaria comprar pão fresquinho, frios e preparar um café com leite.
No dia seguinte? Ah… A nostalgia se fez presente com o mundo cheirando a saudade, os ventos carregando meu coração.
É uma sensação única. O corpo vibra em uma frequência diferente. Mesmo caminhando ao norte, ele vibra ao sul, ele vibra em uma memória emoldurada por saudade, em sépia, que se movimenta e ressoa as risadas que já ecoaram pela sala e cozinha.
A nostalgia é um grande livro biográfico. Talvez o Domingo volte, mas quero convidá-lo para conversar. Tenho tanto a perguntar, a meditar, a compreender… A viver.
Esta foi uma crônica que simplesmente saiu… A beleza da escrita está nesses momentos, no ordinário, em um domingo leve e em uma segunda-feira com um gosto de saudade.
Obrigado pela leitura!
Um beijo,
Lucas.
como uma eterna apaixonada por domingos, degustei esse texto como quem degusta um café quentinho no silêncio da manhã. 🤎
Que delícia de crônica. Como sou péssima em seguir instruções eu ouvi Decibel, mas que ao olhar a letra, acho que combinou bem com o que li, mas sobre a parte de não ser boa em seguir instruções, há um porém, sempre que vejo um nome de banda aqui no seu Substack, imediatamente pauso o que tô a ouvir e vou descobrir mais das bandas e em geral, sempre conheço algo novo e que me encanta. Sua curadoria musical é tão boa, tanto quanto meu bom gosto musical pode esperar rs. Obrigada! Aguardando a nova news!