#44: A Estranha Familiaridade da Saudade
Um encontro com as memórias que vivem em nós, entre o que passou e o que ainda nos acompanha
Para ler ouvindo "Cherry Wine" de Hozier
Olá, como você está?
A saudade tem uma habilidade curiosa de ser a ausência que preenche, um vazio que cria um tipo estranho de aconchego. Quando menos esperamos, ela surge e toma lugar como uma amiga antiga, que conhecemos de longa data. Não me refiro a uma saudade sofrida ou desesperada, mas àquela que traz uma presença silenciosa e quase reconfortante. Ela chega sem convite, mas logo vai se acomodando nos detalhes da vida, como o sabor de um café que já tomamos mil vezes, ou a brisa que lembra uma noite qualquer de um passado distante.
É engraçado perceber como a saudade consegue transformar memórias em partes vivas do nosso presente. Cada um de nós carrega uma coleção de momentos e pessoas que, de algum modo, ainda estão conosco. Um sorriso que trocamos, uma noite em que rimos até o dia nascer, o som de um riso que ecoa mesmo na ausência. Esses pedaços nos completam, e com o tempo, aprendemos a olhar para eles como algo que faz parte de quem somos.
Lembro de um trecho de O Senhor das Moscas, de William Golding, onde ele fala sobre a sensação de um "passado perdido". Talvez seja isso: a saudade cria um lugar para o que foi perdido, mas também nos lembra de que, em algum momento, aquilo foi nosso. Não como um objeto, mas como uma parte essencial de nós. E mesmo que o tempo leve embora algumas coisas, ele nunca apaga o impacto que elas deixaram.
Acho que todos temos lugares onde nossa saudade vive. Às vezes, ela se esconde no armário de casa, no cheiro de um perfume ou em um casaco velho que usamos em tempos passados. Há quem encontre saudade nas cartas guardadas, nos livros que ficam na estante, esperando para serem revisitados. E talvez o segredo esteja nisso: acolher essas pequenas relíquias, aprender a conviver com as lembranças, entender que elas são pedaços de um quebra-cabeça maior que formam nossa história.
Quando a saudade surge, não é sempre com palavras. Às vezes, é um toque invisível que lembra uma época, uma sensação que ecoa. Como aquele domingo em que tudo estava em paz, ou o som distante de risos de uma noite qualquer. E mesmo sem querer, a saudade traz consigo uma beleza difícil de explicar. Ela nos relembra que tudo o que vivemos, de alguma forma, valeu a pena – porque ainda estamos aqui, guardando cada pedaço.
Talvez seja por isso que sinto tanto apreço por essa estranha familiaridade. É um paradoxo bonito: viver o presente com o coração dividido entre o que já foi e o que ainda é. A saudade, ao final, é uma maneira de dizer que amamos o que tivemos, sem pressa de esquecer. E talvez, ao aceitá-la como parte de quem somos, possamos finalmente encontrar paz entre o que ficou e o que ainda está por vir.
Leiturinhas para nos fazer companhia:
Uma Vida Pequena – Hanya Yanagihara
Uma história profundamente emocional sobre amizade, perdas e como certas lembranças ficam conosco para sempre. A narrativa explora a dor da saudade e os vínculos inquebráveis que se formam ao longo da vida.Coração das Trevas – Joseph Conrad
Embora não trate diretamente de saudade, Conrad aborda o sentimento de perda e desorientação com uma sensibilidade que vai além do tangível, capturando a solidão de quem revisita os recantos mais obscuros de si mesmo.
Musiquinhas para a jornada:
Ben Howard – "Old Pine"
Uma melodia que lembra uma nostalgia boa, leve e confortável. A canção tem um tom caloroso, perfeito para quem gosta de pensar nas memórias que ainda fazem parte de quem somos.Novo Amor – "Anchor"
Uma música delicada sobre conexão e apego, que reflete a dualidade de lembrar com carinho e sentir a falta do que um dia foi. É para ouvir com o coração aberto, no mesmo tom da saudade.
Que texto lindo. Enquanto uma pessoa um tanto nostálgica, adorei esse trechinho “viver o presente com o coração dividido entre o que já foi e o que ainda é”. É exatamente isso! 👏
A saudade me lembra apego, me remete ao preenchimento que buscamos a partir do que nos falta.
Mas a saudade também me remete às memórias, as experiências e tudo aquilo que se eternizou em nós, independente se é sobre algo possível de explicar, mensurar e a saudade é o nome que damos ao ato bom de de lembrar, de reviver.
Sou apaixonada por Novo Amor, as noites que ouço música para dormir em geral são ao som de Novo Amor...
Obrigada pela partilha, parabéns pela elaboração!!
🙌🙏