Lembro da primeira vez em que tentei tocar violão.
Os dedos, ainda ingênuos, não entendiam a rigidez das cordas de aço.
Doía.
Cada nota era uma pontada, como se o instrumento pedisse um pedágio antes de me deixar entrar. Mas continuei. Há coisas que a gente insiste em aprender mesmo quando machucam.
Com o tempo, surgiram os calos — pequenas crostas de resistência que me permitiam deslizar sem sofrimento. Descobri então que o corpo fabrica suas defesas bem depressa; o coração também.
Entre o amor e a insensibilidade
Passei as últimas semanas ouvindo “Callous” – NVM no repeat.
NVM é um quarteto emo-indie de Richmond, Virgínia, dado a guitarras sujas e confissões à luz baixa. A letra de “Callous” parece escrita com o sangue já quase seco de quem tentou amar demais:
Nevermind, don’t come round, it hurts me to sing
I’m starting to callous
The one thing that I love is all I’m beginning to hate
Quantas vezes a gente não evita justamente aquilo que ama porque a dor associada ficou grande demais? A cada tropeço, formamos uma película nova: mais grossa, mais insensível — mais longe daquilo que fazia o coração bater diferente.
Calos emocionais & a lógica do “insulamento”
Na clínica chamamos esse endurecimento de insulamento: quando o afeto é separado do pensamento para que não doa. Funciona como anestesia psíquica, mas custa caro — perdemos a inteireza, nos vemos agindo no automático, longe do que um dia vibrava.
Joan Didion, em O Ano do Pensamento Mágico, diz que o luto não se supera; ele se aloja. É como uma pedra no sapato: você aprende a caminhar apesar dela. Talvez nossas calosidades emocionais sejam essa tentativa de continuar andando, mesmo cientes da pedra.
Existe um certo milagre nos encontros. — Carla Madeira, Tudo é Rio
Descalçar-se de novo
E se — só por exercício — a gente reaprendesse a sentir?
Não para sofrer à toa, mas para lembrar por que começamos. Tirar a luva grossa e tocar a própria pele: reconhecer que há vida pulsando nas pontas dos dedos.
Penso no violão: tocar deixou de doer quando eu parei de sentir. Mas naquele mesmo momento, o som ficou mais limpo, como se a dor tivesse sido o preço da beleza até ali. Talvez seja assim com tudo o que importa: continuar, mesmo que doa, até a dor virar melodia.
E você — onde seus calos emocionais doem mais?
Boa semana, boa batalha e volte sempre.
Lucas
Trilha para ler no escuro
“Callous” – NVM
“White Ferrari” – Frank Ocean
“Coração Veloz” – Tuyo
“The Night We Met” – Lord Huron
Isso me lembrou uma outra frase que vi hoje. Ela dizia o seguinte:
"Curar-se é dançar as músicas que antes o faziam chorar"
É muito bonita essa reflexão do luto que diz que, ele não desaparece, ele se transforma em algo com o qual você aprende a conviver, e eventualmente, até mesmo viver quando preciso, seja com lágrimas ou com risadas!